Na seqüência do tópico-homenagem a Orson Welles, abro agora este para celebrar a figura de Alfred Hitchcock.
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Malgrado sejam asserções de todo procedentes, asseverar que Alfred Hitchcock é um ‘mestre do suspense’, ou que possui uma habilidade ímpar em manipular com acuidade cirúrgica os mais recônditos desvãos da psique do espectador, seria simplesmente, como reza o velho adágio popular, “chover no molhado”; assim sendo, gostaria de ressaltar aqui outro aspecto, igualmente fundamental, na obra do cineasta inglês.
Jean-Luc Godard certa feita escreveu, quando ainda era crítico da
Cahiers du Cinema, que Alfred Hitchcock era “o mais alemão dos cineastas ocidentais”. Trata-se, vale dizer, d’um juízo sobremaneira críptico, ao menos à partida (estaria o diretor francês ironicamente afirmando, se calhar, que tão somente o cinema anglo-americano poderia ser tido como ‘ocidental’? Apenas conjecturo, todavia).
Não obstante, há na observação godardiana um dado deveras significativo, ainda que relativamente pouco mencionado, quando se fala a propósito de Hitchcock: caudatário das melhores tradições do cinema expressionista alemão, o
opus hitchcockiano (sobretudo em se tratando de seus filmes em P&B) é uma verdadeira aula magna em termos de requinte formal e elegância estrutural: seus planos são virtuosos, plenos de geométrica exatidão; os enquadramentos, muito embora dotados d’um rigor milimétrico, não raro assombram o público com angulações inusitadas e vertiginosas (como esquecer, por exemplo, a assombrosa seqüência do assassinato no parque de diversões em
Strangers on a Train (1951)?); a montagem, vero relógio atômico em termos de precisão, ajusta-se com inacreditável perfeição às exigências da narrativa; o espectral
chiaroscuro da fotografia de suas fitas em P&B, logra evocar a ominosa fantasmagoria dos melhores momentos de um Murnau; a câmara, por fim, como se fosse o finíssimo estilo de bambu nas mãos de um calígrafo nipônico, esparge na tela silhuetas, texturas e matizes de refinada fatura.
Celebremos, pois, a figura de Alfred Hitchcock, esse “pintor de pesadelos vivos” (
apud Michael Löwy, a respeito de Kafka), criador genial tanto na arte de suscitar no público seus temores mais abissais, quanto no exercício do cinema como veículo de transcendência estética.