Obscuridades do Rock Brasileiro não se dedica a inventariar uma determinada perspectiva musical, mas sim a resgatar grandes bandas do passado do
rock brasileiro, as quais, sobretudo em função das injunções de um mercado consumidor pouco à efeito à experimentação artística, bem como de uma economia em crise permanente (pelo menos até muito recentemente), não lograram ter uma carreira longa, ou mesmo que seu curto mas precioso legado pudesse ser devidamente conhecido pelas gerações futuras.
Formada em 1983 por Paulo Barnabé (vocais), André Fonseca (guitarra e voz), Sidney Giovenazzi (baixo e voz) e James Müller (bateria), a Patife Band surgiu no sobremaneira fértil e estimulante cenário da vanguarda paulistana da época, onde pontificavam formações como Grupo Um, Pé Ante Pé, Aguilar e Banda Performática, Rumo, Língua de Trapo, bem como figuras do porte de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção; não obstante, enquanto os artistas supracitados permaneceram (exceção feita ao
free jazz do Grupo Um) inseridos em maior ou menor medida no idioma estilístico da MPB, a Patife Band caracterizou-se por um
mix de tal legado com as linguagens do
punk rock e do
jazz de vanguarda, fusão essa devidamente envenenada por agulhadas de música dodecafônica e
dada music metalingüística zappiana, não fosse Paulo irmão mais moço de Arrigo Barnabé. Em 1984, já com Cidão Moreira no lugar de James Müller, a banda começou a percorrer o circuito alternativo da Paulicéia, chamando a atenção da crítica.
No ano seguinte, fariam sua estréia discográfica com um
ep lançado pelo selo da Lira Paulistana, célebre teatro que à época era o centro nervoso do experimentalismo musical na capital bandeirante. Em 1986, participou da trilha sonora do filme
Cidade Oculta, de Chico Botelho, com a excelente
Pregador Maldito, de autoria de Paulo Barnabé. A fita, uma instigante paródia de filme policial
noir estrelada por Arrigo, Carla Camurati e Cláudio Mamberti, teve ótima receptividade de público, o que facultou a Paulo e sua
gang um contrato com a WEA. No ano seguinte a banda enfim lançaria seu primeiro
lp,
Corredor Polonês. Infelizmente, contudo, a ousada fusão musical que praticavam não obteve repercussão comercial suficiente, de modo que a gravadora logo se desinteressaria pela banda. Sem apoio e viabilidade radiofônica, a Patife Band ainda resistiu até 1990, quando então encerrou suas atividades. 12 anos depois, em 2002, a WEA relançaria o álbum em CD, mas a falta de divulgação e o desinteresse geral de nossa malfadada imprensa 'cultural' por artistas inventivos não possibilitaram um renascimento para a banda. Todavia, em 2004, como não raro sói ocorrer com o que de bom é feito em nosso país, a Patife Band foi redescoberta pela gravadora inglesa Soul Jazz, especializada em música experimental de todo o planeta, que incluiu a faixa
Teu Bem (cá pra nós, uma má escolha em se tratando da obra da Patife Band) numa excelente coletânea dedicada ao
post punk paulistana,
The Sexual Life of the Savages - Post Punk From Sao Paulo, Brazil. Animada quiçá por esse
revival, no ano passado a banda lançou o CD
Ao Vivo, gravado no Festival Demo Sul, em Londrina.
Discografia
selecionada:
Patife Band EP (1985)
01) Tijolinho
02) Pregador Maldito
03) Pesadelo
04) Tô Tenso
05) Noite Feliz
06) Peiote
Considerado em retrospectiva, o
ep de estréia da banda acaba por soa como um rascunho para o
lp de 1987: afinal de contas, das 6 faixas presentes, 3 (
Tô Tenso,
Pregador Maldito e
Pesadelo) seriam regravadas com maior
panache, qualidade técnica e destreza instrumental em
Corredor Polonês; a que apresenta maiores diferenças em relação a versão ulterior é
Tô Tenso, notadamente mais
heavy metal, desacelerada e genérica no
ep, malgrado conte com um feroz solo de guitarra que André Fonseca não conservaria na regravação ulterior.
No que tange às demais canções, duas são hilariantes versões
punk, muito embora um tanto quanto formulaicas, para a tradicional canção natalina
Noite Feliz e para o cafonérrimo
hit da Jovem Guarda
Tijolinho, de autoria da dupla Wagner Benatti e Bobby di Carlo. O destaque vai sem dúvidas para a neurótica
Peiote, um obsessivo exercício de dissonância pianística que remete muito, sobretudo em função do delirante arranjo vocal, ao clássico da detonação psicodélica
Pow R. Toc H., do mefistofélico arcano Barrett.
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Corredor Polonês (1987)
01) Corredor Polonês
02) Pesadelo
03) Chapeuzinho Vermelho (Lil' Red Riding Hood)
04) Tô Tenso
05) Poema em Linha Reta
06) Teu Bem
07) Três por Quatro
08) Pregador Maldito
09) Vida de Operário
10) Maria Louca
Corredor Polonês é a meu juízo um dos grandes marcos da história do
rock brasileiro, um rico e multifacetado painel onde convivem exemplarmente idiomas musicais díspares como o
punk, o
free jazz, o baião, o mambo, o dodecafonismo e o surrealismo zappiano, tudo isso executado com considerável bom gosto e brilhantismo instrumental.
Reflexo talvez da participação da banda em
Cidade Oculta, há todo um notável senso cinematográfico percorrendo o álbum, elemento que marca presença com especial relevo nas duas primeiras faixas: a sombria e inquietante
Corredor Polonês, em compasso de fantasmagoria
jazz noir colidindo com uma boa dose de agressividade
post punk, e a paranóia mercurial de
Pesadelo, um
punk jazz em metamorfose dodecafônica. Aliás, além da dinâmica cinematográfica, há também toda uma atmosfera de paranóia e desassossego permeando o disco, o que reverbera até mesmo em algo como a metalingüística e fiel versão para a
cover que o
combo brasileiro de
rockabilly Jet Blacks fez, na década de 60, de um clássico do gênero,
Chapeuzinho Vermelho (Lil' Red Riding Hood), primeira das duas manifestações de uma oswaldeana antropofagia musical presentes no
lp. Logo em seguida temos a canção mais notória da banda, a trovejante
Tô Tenso, espécie de hino
maudit em denúncia / louvor à urbanóia
in extremis de São Paulo, fuzilaria
punk assimétrica e minimal turbinada por uma genial arremetida
fusion em sua segunda metade.
A quinta faixa é uma surpreendente orquestração
free jazz para o
Poema em Linha Reta de Fernando Pessoa, onde a rispidez vocal de Paulo Barnabé e as assimetrias instrumentais casam-se às mil maravilhas com a fúria confessional do poeta português. O curioso
mambo jazz Teu Bem é a faixa seguinte, a meu ver ligeiramente decepcionante em sua ambiência
low key; não obstante o disco logo recobra
momentum com a turbulência caótica de
Três Por Quarto, dois minutos de esfuziante anarquia musical, onde transita-se de tambores
big band para neurose
avant, passando por lampejos de flamenco e
jazz fusion, com a mesma velocidade flamejante e precisão maníaca de um Naked City.
Pregador Maldito, ode à monomania cuja tessitura sonora transfigura uma espécie de insólita paródia da melodia principal de
Pedro e o Lobo, do compositor erudito russo Prokofiev, entremeada por interlúdios
lounge jazz.
Vida de Operário, um baião de protesto, é a segunda emanação de antropofagia oswaldeana no disco; e
Maria Louca, por fim, peça instrumental de
avant jazz anguloso, encerra
Corredor Polonês com grande intensidade e
finesse.